Sunday, January 04, 2004

Para ti M.

Sento-me pela segunda vez a lutar com este teclado…desta vez é diferente. Já não estou furioso com todos…agora é só comigo.

Lembro-me como se a imagem daqueles momentos tivessem ficado marcados na minha retina. As imagens são ferros quentes que me marcaram como um criador de gado marca as crias – estas são minhas. As imagens são minhas e fui eu me marquei, ou não! Não sei muito quem foi o autor desta pintura tão marcante, mas sei que tenho de escrever sobre ela para que ela se esbata, e permita a visão de outras coisas… outros momentos que fiquem marcados, e mais tarde tenha de os apagar. Apagar? Não eles estão lá sempre, uma marca de nascença, marcas que vão nascendo e ficando.

Estávamos em frente ao ecrã de cinema. Tão grande. A imitação da vida, que a vida que já imita, torna-se maior que a nossa vida, substitui nossa vivência. Sítios onde já precisamos de ir, amores impossíveis que já não precisamos de sofrer, e que não sofreríamos de qualquer forma. Encosto-me ao seu ombro, suavemente, uma pena a repousar no fim de uma longa viagem. E olho para o ecrã mais uma vez. As imagens que passam, são banais e banalizam a nossa vida. Banais porque as vemos repetidas vezes sem conta, em ecrãs diferentes é certo, e também com rostos diferentes, mas as expressões destes rostos todos não mudam. Fazem-me lembrara as mascaras de Carnaval vendidas em série a uma série de crianças indistintas, que mais parecidas ficam. Mascaras que pretendem simular emoções e apenas nos tornam mais iguais, mas desta vez com expressões de borracha.

Beijam-me dois amantes após uma série de encontros e desencontros… acho que vivem felizes para sempre. Para sempre?!?!? Que sempre é este? É o tempo que dura o beijo? É o resto do filme? Ou será que se consegue prolongar para lá da tela, na vida real? A vida é bela, e vivemos estupidamente felizes, estupidificados por nós próprios… buscamos a estupidificação de cada vez que procuramos produtos para sermos mais iguais aos outros enquanto nos cremos diferentes.

A mão dela..tão suave… passa no meu rosto, não consigo… a raiva, que me consome…raiva! Medo! Impotência… não sei. Não sei se te amo ou não. Sei que já amei nem que por breves instantes. Mas agora… agora não sei… gostava que ela me dissesse, que a sua mão fosse o fio condutor do seu pensamento e que este se me revela-se… uma aparição divina tão terrena.
Sinto a sua respiração mais ofegante, sinto a sua vontade de se mover na minha direcção. Não faças isso, grito de boca fechada, com o olhar suplicante. Olha-me com os seus olhos grandes, brilhantes, um ecrã muito mais bonito e com mais para revelar. A respiração dela já bate de encontro ao meu rosto, mais forte, mais…indefinida… por favor dá-me um sinal, aquele que faltou durante tanto tempo. Sempre esperas-te que fosse eu a dar o primeiro passo, tão forte e decidida que és para tudo e tão hesitante em relação a mim.

Revelas piedade no teu olhar... quem ama não quer piedade, e eu não sei se te amo. O teu peito encostado ao meu ombro acompanha a tua respiração ofegante, quente, sensual. Quem ama não busca apenas a luxúria, esta vem como um bónus, e eu não sei se te amo.

Inclinou-se para me beijar, o beijo que tanto desejo, o beijo da estupidificação final. Do final feliz, do herói inútil que fica com a mulher atraente. Mas eu não te quero beijar. Isso acabou. Somos diferentes. A ti o filme inspirou o beijo. A mim a repulsa, do beijo, dos filmes…. de ti. Sim de ti. És um deles, queres um final feliz. Isso não existe, percebi-o graças a ti. Ficarei seco e cínico, mas sei que os finais felizes não existem. Por detrás de cada final feliz existe alguém que ficou a chorar por ti, por mim. Ficamos nós.

Sei-o agora, mas quando virei a cara ao desejo dela não sabia. Estávamos a ser observados. Mais soube que ele tinha morrido, e precisamente naquela sala de cinema, foi deixado ali sozinho abandonado, pelos espectadores que viram nele apenas um velho que deixara adormecer durante um filme “tão bom”. Enganaram-se, embora ele já tivesse visto aquele filme muitas vezes, durante a sua vida, com outros rostos mas as mesmas emoções, não adormeceu. Morreu ao saber que estava impotente para me curar.

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