A queda de um Anjo, ou, Um prédio na Rua da Sedução
Enquanto criança, gostava do risco. Subia a um dos prédios vizinhos em construção, e ficava nos buracos das paredes, que mais tarde seriam, janelas, varandas… E ficava com o olhar perdido em nada, absorto com os meus pensamentos, solto de tudo… e invariavelmente caía do prédio abaixo. Descuidos de criança. Magoava-me. Nada de especial, contusões, luxações, dores que passam logo que surgem uma nova brincadeira com os amigos.
E voltava a subir aos prédios e a abeirar-me das janelas. Mas subia cada vez mais alto, e de mais alto caía. Achei que a sedução da queda não era normal, mas aqueles momentos antes da queda em que me sentava olhando o mundo de cima, pensando que era feliz… e os milésimos de segundo em que dura a queda… são muito mais do que a vertigem da velocidade, a necessidade de auto-destruição… era nessa fracção infinitesimal de tempo, que era melhor que todos. Sabia que ia cair, chorar, berrar, jurar a pés juntos que nunca mais o faria, e no entanto… sabia que não morreria. Passados uns tempos já estaria de pé, ou então a rastejar agarrado aos andaimes, a tentar alcançar uma janela mais alta.
Cresci. E o meu corpo mudou. Os ossos perderam maleabilidade e os músculos, o que ganharam em força, perderam 2 vezes em flexibilidade. E por uma última vez subi ao prédio, já quase construído, para, no terraço, avistar por fim a terra prometida. E avistei.
E caí.
Parti o corpo todo… escoriações que duram até hoje, fracturas expostas, hemorragias internas, lesões cerebrais… Por um vislumbre de felicidade quase morri. E se não morri foi porque não tive a coragem de largar o suspiro final. Covardemente resisti respirando, até ter força para me arrastar por entre lixo, lama, entulho, vasos partidos, tijolos disformes rejeitados.
Custou. A fisioterapia foi difícil e precisei de várias mãos hábeis, umas mais experientes que outras, mas consegui ficar curado, ou quase, à custa de vários dias de ócio mórbido, de isolamento de tudo e de quase todos. Jurei e lutei furiosamente para me manter afastado deste prédio. Vivi no campo, nas montanhas, tornei-me eremita, velejei ao sabor do vento, esperando que a sua arbitrariedade me mantivesse longe, ou me secasse este desejo de cair.
Hoje caminho orgulhosamente entre os que se dizem meus iguais, pois sei que já vivo a minha segunda vida. Porquê? Não sei. Se existe Deus não fez nada para me ajudar ou prejudicar. Foi tudo da minha inteira responsabilidade. E nem culpo os senhores das obras por nunca me terem avisado do perigo. Estas coisas acontecem.
Ontem passei pelo prédio. Julgava-o já decrépito e desmazelado, consumido pelo tempo e pelas intempéries. Mas, não. Está mais altivo e bonito que nunca. Estou a pensar comprar lá um apartamento. Talvez um que tenha acesso ao terraço.
Não sei se vou cair outra vez…
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