Monday, February 09, 2004

A Carta ou a Angústia

Aquele era o dia. Após tanto tempo à espera, chegaria finalmente a carta. Já fiz todas a as previsões possíveis, para todas as respostas possíveis e impossíveis. Sim., sinto que estou preparado para tudo. Estou calmo, consciente e firme. Confiante que tenho uma reacção preparada para cada eventualidade.

Passa o tempo…

Começo a inventar formas de me ocupar enquanto não chega o carteiro. Faço um lanche preparo um café, ouço uma música… faço filmes na minha cabeça. Hhhhaaaaa… quando a resposta chegar! Limpo o escritório daqueles papéis que não interessam… limpo a minha cabeça de maus pensamentos.
Não que a carta vá alterar a minha vida, ou vai? “claro que vai seu estúpido, senão não estarias tão ansioso” “está bem, a carta é importante, mas tens alternativas… não tens?” “a alternativa dele é estar calado… estes seres humanos não passam de corpos inanimados cuja energia potencial é inversa à cinética, e ambas se dissipam assim que o chão interrompe a sua queda” ”este é um humano diferente” “isso é o que todos eles pensam, mas não admitem – são todos igualmente estúpidos” “vais ver, assim que a carta chegar tudo vai mudar, a o movimento que gerará será imparável…” “até ao chão” “…” calem-se! As vozes na minha cabeça estão a dar comigo em doido…desapareçam! Estava tão bem sem vocês.
“brincadeirinha…” “…sabes que já não passas sem nós…” “… nós somos a mão que coça na ferida quase sarada…” “… até sangrar novamente…” “… mantemos-te em carne viva…” “… e tu gostas!”
Eu só quero que chegue a carta. A pior resposta é a ausência de resposta.

Por esta altura já estou a imaginar o que poderá ter sucedido. Terei escrito mal o meu endereço… Haverá incompetência de alguma secretária de pernas abertas… Carteiro frustrado com o salário, que resolve vingar-se nos utentes… Ou estará a minha casa no cimo de um monte demasiado alto para subir de bicicleta… as teorias de conspiração começam a envolver-me como nevoeiro sebastianino, um processo Kafkiano.
Terá sido a carta apreendida por suspeitas de traição á nação… e já alguém se lembrou de prender a nação por traição aos cidadões?
Não quero pensar mais no atraso da carta… ansiosamente aguardo, caminhando de um lado para o outro na sala cavando um fosso (que saudades das bandas desenhadas do Pato Donald), ou será a minha cova?
Por fim o desespero acabou. Não querendo parecer demasiado ansioso, fui buscar calmamente a carta, demorando todo o tempo do mundo (alguns milésimos de segundo). Calado como na missa, pousei a carta e abria-a…

PUMMMMMM!!!!!!!!

Estava armadilhada! Bastou uma fracção demasiado grande de tempo para pedaços do meu corpo voarem em direcções aleatórias e pintarem nas paredes um quadro surrealista de sangue e pedaços de carne parcialmente carbonizada.
Finalmente tinha uma resposta. E não estava preparado para ela. Também… já não me adiantava de muito. As vozinhas dentro da minha cabeça tinham mais uma vez razão… A carta mudou de facto com a minha vida. Mexeu mesmo muito comigo.

Após o meu o funeral chegou outra carta àquela que foi a minha casa. Era um pedido de desculpas. Um terrorista incompetente tinha-se enganado na morada. Os meus pedaços ficaram muito mais contentes.


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