Tuesday, March 16, 2004

Acordei cego.

Despertar estranho, pois à consciência da minha cegueira está associado a inexistência de factos visuais para interpretar. Entre encontrões aos móveis e cabeçadas nas portas consegui tomar pequeno-almoço. Suponho que desfiz a barba bem (embora tenha sentido um liquido quente a escorrer pelo pescoço no final do acto) e que até acertei com a sanita enquanto urinava. Esta minha condição permite que as coisas sejam da forma que o meu cérebro as projecta, a meio caminho entre o sonho e a esquizofrenia. Interessantes as alucinações visuais de um cego esquizofrénico (e não serão todos os esquizofrénicos cegos?).
Ao fim de algum tempo todos os meus outros sentidos estão no máximo. A cegueira levou-me para um plano superior de percepção. O barulho que de inicio não passava de cacofonia, speed metal ou Toy, causando confusão generalizadas nos meus circuitos cerebrais, começa a passar por um crivo selectivo, distingo a pouco e pouco as conversas dos vizinhos, os carros, e até o bater acelerado do meu próprio coração com a ansiedade de absorver todo o mundo que está para além do apartamento.
E saí de casa.
Empurrado pela multidão apercebo-me que já não vejo as suas caras tristes definhando entre pensamentos fúteis. Sinto o tilintar das moedas e o murmúrio de agradecimento, mas não vejo o indigente. Mas não sou um cego platónico. Eu já vi. Todos os sons, cheiros, o macio da lã e a dureza da pele, não os posso interpretar livremente. Estou preso pelas memórias do que já vi. Não preciso de ver o nojo da cara do pedinte e o sorriso orgásmico de quem dá esmola, para saber que eles estão lá. O suor que cheiro tem dono. É aquele homem obeso num fato lilás e cabelo seboso, que procura movimentar-se durante o seu passeio semanal.
Não gosto deste lado da estrada. A percepção de que consigo ver mesmo estando cego, torna-me um invsual numa terra de cegos. “deixe que eu ajudo-o a passar a estrada” mais que uma oferta de uma mulher anónima, soou-me a pedido, mais um lamento pela sua condição, do que pena pela minha. Ninguém dá nada a ninguém, e se a minha cegueira estimulou os outros sentidos, eu continuo sem ver! Sinto de forma diferente a vulnerabilidade do meu corpo, qualquer passo falso pode significar o fim. Poderei ter um encontro com a Morte sem a olhar de frente. E confiar cegamente em alguém num momento de maior vulnerabilidade? Claro! “Está demasiado trânsito para atravessar sozinho” A voz que inicialmente me parecia indistinta de todas as outras que me rodeiam, surge agora mais aveludada, quase sensual. Embora cego não perdi as minhas faculdades de homem, e passou a ser possível identificar pela voz a altura da minha interlocutora e agora guia, senti que os seus dedos eram firmes não se notando o balofo de uma existência fútil… Sou agora uma cria de ave que se deixa empurrar para fora do ninho, confiando na palavra da mãe. Leva-me para onde quiseres (sinto que não se pode dar carta branca a humanos, quaisquer que eles sejam),
Á sensação de comunhão com esta mulher, seguiu-se uma desconfiança virulenta. Não sinto já o movimento das pessoas. Olham-me para mim de mão dada com uma estranha que se prepara para me ajudar(?) a passar para o outro lado. Exibem um sorriso irónico, de prazer abjecto, na antecipação da queda de quem lhes é superior, agora todos em comunhão, felizes e ignorantes do prazer que por breves momentos tive, e que eles nunca poderão possuir. No lado de lá, vou chorar de pena pelos vossos sonhos abjectos e inúteis da minha queda. Por isso é que nunca serão invisuais numa terra de cegos!
Vamos!
Com o braço na minha cintura indicou-me o caminho. A cada passo sentia crescer a minha confiança e a minha empatia por esta desconhecida…
Ei! Onde estás? A minha confiança foi-se! Rodopio sobre mim mesmo e não a vejo… porra! Ainda estou cego! E confuso. Não brinques comigo… estás a brincar não estás?! Não me ias deixar aqui sozinho no meio da…

PUM!!!

Acordei no hospital. E já conseguia ver… “lamento… o Sr. está tetraplégico” quê?! “existem possibilidades de recuperação, mas só com o tempo se saberá a extensão das sequelas, que irão sempre ficar em menor ou maior escala” Obrigado Dr. Naõ me consigo mexer, mas pelo menos já não estou cego.

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